domingo, 11 de dezembro de 2011

No Brasil machista, demorou para o homem negro ser consagrado como símbolo sexual do país, a exemplo das mulatas. Agora, ele é a bola da vez, o príncipe das fantasias femininas. Nesta reportagem, cinco negros bonitos e charmosos falam de assédio e racismo e mostram o outro lado desta questão.
Por Lina de Albuquerque

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O estigma da sensualidade, que há tanto tempo persegue negras e mulatas, agora colou no outro gênero. A consagração do homem negro avança dos campos de futebol e do samba para o cinema, a música, a publicidade. Ícones da beleza negra masculina como os cantores Tony Garrido, Alexandre Pires e Netinho são só a ponta aparente de um fenômeno que estimula a libido feminina e salta a fronteira racial: quem levanta a bola são as mulheres brancas.

Não que qualquer negro seja alvo da tietagem. O símbolo sexual tem que ter os atributos do estereótipo do "negão": tipo físico privilegiado, sensual, bem sucedido, famoso -o negro comum continua invisível. "Num país de racismo velado como o Brasil, o negro só tem visibilidade se oferece algum estranhamento. Ou é o pagodeiro que tem carro, ou o artista que viaja de avião", diz Edson Montenegro, apresentador do programa "Zoom", da TV Cultura.
Nem todos os negros festejam. "Muitas mulheres ouviram falar dos atributos sexuais dos negros e querem experimentar algo diferente. Como se fumassem uma maconhazinha escondido", compara o cantor e bailarino Bukassa Kabengele. Ele não se diz interessado em representar o papel do "negão" consagrado em letras de pagode como a de "Os Morenos": "Lá vem o negão, cheio de paixão, te catar, te catar (...)".

A percepção que muitas mulheres brancas estão tendo de homens negros -e a falta de percepção, por parte de alguns deles, do que representam- é tema de reuniões da Associação Afro-Brasileira Ogban, de São Paulo. "A maioria não se dá conta de que certas brancas se aproximam movidas por fantasias como a de que o negro é bem dotado", sinaliza a pesquisadora Berenice Assumpção Kikuchi, da Ogban. Uma das consequências disso é que a mulher negra está ficando sozinha e, segundo a pesquisadora, continua procurada por brancos apenas para relações de caráter eventual.
"Não escolho uma mulher pela cor. Escolho pelo cheiro, pelo astral"
Gil de Souza, 22 anos, estudante de ciências sociais
Se até hoje vi dez negros no corredor da PUC, foi muito. Sou o único negro da minha classe. Pelo menos dois professores me tratam diferente, mesmo num curso como o de ciências sociais. Olham para o meu cabelo 'dreadlock', imaginam que sou vagabundo.

Meus amigos podem me chamar de qualquer coisa, que eu não me incomodo. Entre amigos negros, então, a relação costuma ser mais direta, fazemos até piada: 'se enxerga, seu pretinho pé rapado'. Mas se algum estranho me chamar de neguinho, negão, crioulo, eu não gosto.

Sabe que até os mendigos que dormem no pátio de um supermercado perto de casa se sentem no direito de me tratar de forma íntima? Eles já chegam com: 'E aí, mano?' Se eu fosse branco, a abordagem seria diferente.

Durante dois anos, namorei uma loira. Um amor intenso, recíproco. Ela dormia em casa, mas minha mãe questionava a forma como eu estava sendo tratado. O pai dela era totalmente contra. 'Pô, ele é negro, então já sabe. É pobre, não tem futuro'. Eu ia buscá-la em casa e a mãe nunca me convidava para entrar. Fiquei traumatizado.

Quando o namoro acabou passei por uma fase em que me afastei das garotas. Ainda não tinha noção de que era um cara bonito. Hoje, quando falam que eu me produzo, uso roupas diferentes e tenho um visual de classe média, lembro da minha origem. Minha mãe era uma cozinheira que batalhou sozinha para sustentar sete filhos. As coisas não foram assim tão fáceis.
Eu percebia que às vezes me aconteciam coisas esquisitas. Uma vez, eu trabalhava de barman em uma festa e uma loira me puxou pela mão. Ela queria desfilar comigo, me exibir: 'Olha só o negão que consegui'. Eu me senti totalmente incomodado. Outra vez conheci uma francesa e logo pensei: 'essa aí está a fim de dar porque eu sou negro. Ok, então vamos brincar um pouco'. Só que acabei sacando que não era só isso e tivemos um namoro de seis meses.

Não escolho uma mulher pela cor, escolho pelo cheiro, pelo astral. A minha atual namorada é uma morena incrível e a família dela me adora. Também namorei duas negras. Mas não suporto esse tipo de pagode que faz o marketing do negão gostoso. Nesse caso, é o próprio negro que está se mostrando vulgar". 
"Esse papo de atração entre negros e brancas é uma tremenda bobagem"
Bukassa Kabengele, 29 anos, cantor e bailarino
"Eu acordo e vou dormir todos os dias tendo consciência de que sou negro. Vivo num grande estado de alerta. Já fui parado pela polícia mais de 30 vezes; toda vez que boto o pé na rua tenho que levar documento. Com 12 anos, um guarda me apontou uma metralhadora quando eu estava saindo da padaria. 'O que você está levando aí?' Era um litro de leite que acabava de comprar.
Enfrento este tipo de preconceito desde que mudei do Zaire [atual Congo] para o Brasil, há 19 anos. Vim para cá com quatro irmãos. Meu pai tinha ficado viúvo e fazia doutorado em antropologia na Universidade de São Paulo, na USP. Ele conheceu e acabou se casando pela segunda vez com uma psicóloga branca.
O meu quinto irmão nasceu no Brasil e hoje estuda ciências sociais na Unicamp. Tenho outro irmão desenhista e um atleta. Outro formado em filosofia pela USP e um engenheiro que fez FEI.

Todos nós, incluindo a minha 'segunda mãe', enfrentamos um preconceito pesado. Era só entrar num restaurante para todo mundo olhar. Tenho consciência de que o racismo é resultado de uma força econômica que se impõe sobre outra raça. Os efeitos são desemprego, boicote, falta de oportunidade.
É natural que muitos negros procurem se inserir em áreas onde são mais valorizados: no esporte, na música, na dança. O negro tem uma tradição natural de movimentos ligados à dança, aos rituais, o que mexe com a sexualidade das pessoas. A explosão do mercado da música axé em parte se deve a isso. Mas até aí, dizer que o negro só serve para dançar, jogar futebol e ser bom na cama...

Com o tempo, fiquei um pouco mais relaxado com essa questão. Entro em qualquer lugar de cabeça levantada, não tenho complexo. Estudei em ótimos colégios, cantei e dancei em shows de artistas como Marisa Monte e Elba Ramalho. Minha companheira, a atriz e agente cultural Silvana Mantonelli, é branca, morena. Mas esse papo de atração entre negros e brancas é uma tremenda bobagem.
Se tive mais namoradas brancas do que negras foi apenas porque convivi num meio social onde elas predominam. Também já sofri por isso. Uma vez, durante uma turnê, tive um caso com uma produtora italiana que deixou claro que os pais ficariam chocados se descobrissem. Ela era branca, loira, linda. No começo foi uma curtição, mas chegou uma hora em que me cansei de encontrá-la escondido. Pressionei: 'Está na hora de você se resolver com a sua família'. O namoro acabou.

Muitas mulheres acham que ter um negro na cama é o mesmo que fumar uma maconhazinha escondido. Elas ouviram falar dos atributos sexuais dos negros e querem experimentar algo diferente. Só que na hora de assumir socialmente, você não existe".
"A maioria das mulheres só quer saber do negão classudo"
Marcelo Silva, 23 anos, modelo
"Quando eu era moleque e ia nos bailinhos, ficava com a vassoura o tempo todo. Podia varrer a festa inteira, varrer as escadas, ninguém queria dançar comigo. As meninas me chamavam de macaquinho, eu era o único negro da minha turma de Sapobemba. Algumas garotas eram bem diretas ao me rejeitar: 'Ah, se toca seu neguinho feio'. Eu voltava para casa chorando.
Era magrinho, tinha mesmo um cabelinho feio, sabe aquele macarrãozinho? Usava até xampu da minha mãe para dar uma amenizada.

Com uns 16 anos, tive um namorinho com uma branca. Eu me sentia sem moral por ser preto, queria agradar a família, dava tênis para os irmãos dela, levava pizza. Fiquei arrasado quando a vi beijando um loirinho no muro da escola. Um dia, me enchi e jurei para um amigo: 'essa mulherada ainda vai me pagar'. Hoje, não que eu seja metido, elas correm atrás mesmo.

Meus amigos falam: 'quem diria, hein Marcelo, agora você está um negão!' Só que não sou bobo. A maioria das mulheres só quer saber do negão classudo ou do neguinho cheio da grana. É puro interesse. E se eu não fosse bonito, e se eu não saísse na revista? É quase uma troca de favores: a mulher entrega a sua beleza, os seus cabelos loiros, como uma medalha. E o negro oferece o carrão do ano ou o direito de desfilar com ele.
Tenho um monte de amigos negros que se sentem valorizados com uma loira do lado. Entre uma morena com um visual até mais legal e uma loira, eles preferem a loira. As negras, então, perdem mesmo. Eles dizem: 'de negro, basta eu'. As loiras, em geral, é que dão a deixa. A loira não tem meio-termo: ou ela é bonita, ou ela é feia. Oito de dez mulheres que fiquei antes de casar eram loiras. Fiquei com uma única negra, uma modelo. Não sei explicar o fato.
No meu caso, não é uma questão de preferência. Acho que prefiro as morenas, vivo há dois anos com Andrea, que é descendente de índios. Temos um filho mulatinho, Cauê Hudson, de um ano e dois meses.

Com 17 anos comecei a jogar basquete e, aí sim, as brancas passaram a me enxergar. O interesse aumentou depois que entrei para a moda. Mudei de ramo por causa de uma produtora que me convenceu a fotografar. Na verdade, o que pesou foi o meu primeiro cachê: posei para um outdoor e em 20 minutos ganhei o equivalente ao salário de cinco meses como jogador de basquete.
Cortei o cabelo, fiquei careca. Dei certo neste negócio, tenho um biotipo diferente da maior parte dos negros brasileiros, com mais de 1,90 m de altura, um jeitão de americano. Fui influenciado pelo estilo de vida dos jogadores americanos, as músicas, as roupas. Não tenho muito a ver com o tipo do negro que faz samba, gosta de pagode e bebe cerveja. Nem costumo beber por causa do esporte. Faz tempo que deixei de sentir algum tipo de preconceito por ser negro. Hoje tenho um trampo legal, tenho as minhas coisas, freqüento lugares. Mas antes..."
"Fui e continuo sendo assediado por brancas, não me incomodo"
Edson Montenegro, 42 anos, apresentador do programa "Zoom"
"Quando alguns amigos negros falam que a gente agora é a bola da vez, eu penso: 'oh, tristeza...'. Não fico deslumbrado. Num país de racismo velado como o Brasil, o negro só tem visibilidade se oferece algum tipo de estranhamento. Ou é o pagodeiro que tem carro, ou o artista que viaja de avião. Cada um é valorizado em função de algo muito específico.
'Aquele ali joga futebol; aquele lá canta bem; o outro tem pau grande'. Eu me faço notar pelo meu físico, pela minha voz grave. Mas é o conhecimento, a cultura, que cala o preconceito. Se um negro falar três idiomas, nunca será ridicularizado. Mas isso também é uma característica do racismo. A gente tem que trabalhar em dobro, estudar, ralar.

Fui casado com duas mulheres brancas e com a primeira tive dois filhos, Juliana e Leonardo, hoje adolescentes. O mais novo tem a pele clara e chegou a ficar confuso com a sua mulatice. Mas já começou a se assumir como 'negão', acho bom. Eu, que só vivia no meio de brancos, tive mais dificuldade. Namorei poucas negras, por alguma razão que desconheço tenho preferência por brancas. Pode ser um padrão afetivo ligado à minha primeira paixão, aos 12 anos.
Eu era louco por uma ruiva de olhos verdes, filha de um russo que morava no subúrbio do Rio de Janeiro. Era um amor platônico, achava que ela seria inacessível por causa da minha cor. Depois namorei uma filha de italianos que morria de medo da família descobrir. Durante muito tempo, fiquei meio persecutório, imaginava que todo mundo ficava de olho quando saía com uma branca. A minha segunda mulher me achava encucado demais. Felizmente, superei tudo isso.

Morei no Rio de Janeiro até os 20 anos, sempre convivendo com brancos, mas foi em São Paulo que comecei a me dar conta do 'negão' que eu era. Desencanei de fazer seminário e comecei a trabalhar no meio artístico. Fui e continuo sendo assediado por brancas, não me sinto incomodado. Gosto de mulheres, de forma geral. Encaro tudo com bom humor -se eu não estiver afins, nada feito. Se elas estão pensando assim, por que então não vou me divertir?
Existe um lado positivo nessa moda. Quem sabe essa 'supervalorização' do negro (bota aspas aí porque o tema é controvertido) não seja necessária antes de atingir um ponto de equilíbrio? Vamos pensar no lado bom.

Cansei de ir atrás de trabalho e só ser aceito se tem papel de preto. Queria passar nos testes, independente de ser preto ou branco, porque sou bom ator. Já fiz novelas, minisséries e até um episódio sobre preconceito no "Você Decide", da Rede Globo. Participei da peça musical "Histórias de Nova York", baseada nos contos da Dorothy Parker, fazendo o papel de um cantor de spiritual homenageado numa festa de brancos.
Uma das convidadas, interpretada pela atriz Maitê Proença, usava o tempo inteiro pérolas do tipo: 'até gosto de pessoas de cor -parecem crianças, sempre rindo, cantando...' Ou então: 'o meu marido não tem nada contra negros -desde que fiquem em seus lugares'.

Difícil um lugar para o negro numa sociedade racista. Pode provocar crise de identidade. Hoje apresento um programa sobre cinema na TV Cultura. Para entrar no "Zoom", concorri com mais brancos do que negros. Conquistei pelo meu talento o trabalho de apresentador. Mas foi a primeira vez que não fiz um teste na televisão especialmente para um papel de negro. Essa sim é uma situação que considero ideal."

marie claire.107.fevereiro.2000

"Sou tímido para atacar de negão sedutor, mas é mentira que nunca tenha tirado vantagem disso"
Rui Pereira de Assumpção, 40 anos, garçom
"Sempre fui paquerado por brancas. Na maioria das vezes, levo na brincadeira. Dá uma levantada na moral quando uma menininha olha pra gente e diz: 'ô negão gostoso'. Não sou mais nenhum garoto, tenho 40 anos, acho legal ser notado. Não vou me sentir objeto sexual só porque uma loirinha resolve dar uma passada de mão na minha bunda.
Reconheço que se o gesto partisse de um branco e o alvo fosse uma mulher negra, a atitude poderia ser considerada falta de respeito. Eu não encano. Já me envolvi com gente branca, gente negra, faço o que meu coração mandar. Não vou negar que goste de opostos, aquela velha história de atração entre pólos diferentes. Tive um romance de arrepiar a pele com uma bailarina loira, linda, exuberante. O namoro não deu certo, mas ficamos grandes amigos.

Trabalho há muito tempo em lugares públicos, bares, casas noturnas, lojas de roupas transadas. Transito em diversas áreas, faço comerciais, sou procurado para campanhas publicitárias específicas, como aquela do uísque "Black & White", em que fui fotografado nu junto de uma mulher branca. O ideal seria participar como cidadão em propagandas variadas -não só por ser um negro interessante. Também faço outros bicos posando como modelo vivo em escolas de arte. O meu trabalho artístico não decolou muito; há 20 anos era mais difícil sobreviver como um ator negro. A minha primeira participação em um longa-metragem é um retrato fiel da situação: estreei no cinema num papel de trombadinha.

Fui um garoto pobre. Nasci na periferia de São Paulo e tive de interromper os estudos para trabalhar. Minha mãe era empregada doméstica e não sabia escrever.

Vamos supor que, entre os quatro irmãos da minha família, eu fosse o mais chamativo. Não sou o único que namorou pessoas claras, tenho dois irmãos que já viveram com brancas. Claro que, no meu caso, a aparência abriu portas, sou uma pessoa privilegiada sob este aspecto. Alto, com traços europeus. Tenho abertura para a vida. Viajei, circulei. Nunca me senti muito envaidecido com elogios, passei a vida inteira ouvindo as pessoas dizerem que sou bonito.
Sou tímido para atacar de negão sedutor, mas é mentira que nunca tenha tirado vantagem disso. Tem um lado embaraçoso nas cantadas, principalmente se partem de mulheres casadas que chegam nos restaurantes com os maridos. Às vezes me elogiam na frente deles, se eu fosse branco ficaria vermelho. Sei reconhecer quando alguma mais atiradinha tem nos olhos a mensagem 'vou comer esse negão hoje'. Posso achar estimulante e deixar rolar ou ficar indiferente até ela se tocar de que sou garçom e não prato de self-service".
http://marieclaire.globo.com/edic/ed107/rep_negro3.htm

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