terça-feira, 19 de julho de 2011

O preconceito oculto

O Brasil prefere o mito da democracia racial e fecha os olhos para a intolerância

Ana Carvalho e Aziz Filho

o 113 anos sem grilhões, sem as marcas da chibata. Mas em pleno século XXI a sociedade brasileira empurra os negros e seus descendentes – ou seja, 45% da população – para uma realidade muito parecida com a das senzalas. Para camuflar a responsabilidade por ter mantido por três séculos a escravidão e submetido os afro-brasileiros ao trabalho forçado e ao cativeiro, criou-se, respaldada na miscigenação, o mito da democracia racial. Como se vivêssemos num eterno desfile de escola de samba, a igualdade entre brancos, negros, mulatinhos e tantas outras variantes de cor, criadas para não encarar o preconceito, foi pregada como uma realidade capaz de maquiar a exclusão e a intolerância racial no Brasil. Para aqueles que não conseguiam enxergar dentro de casa a desigualdade e a sua profunda dimensão racial, a separação entre o Brasil e a África do Sul do apartheid era de um enorme oceano. Enquanto aqui negros e brancos dividiam o mesmo banco do metrô, na terra de Nelson Mandela insuflavam a segregação com leis abomináveis. Do lado de cá do mapa, lutar contra o apartheid sul-africano se limitava a repudiar o governo branco do continente negro. O regime sucumbiu em 1994, quando Mandela chegou à Presidência. Com o fim da ditadura racial no país africano, ficaram mais claros o racismo, a discriminação e a intolerância em países signatários de acordos de defesa dos direitos humanos. A máscara da hipocrisia começou a cair. O Brasil é um dos mais constrangidos, mas não está só. Em todos os quadrantes do planeta, oprimidos raciais, étnicos, religiosos e sexuais estão pondo a boca no trombone para cobrar atitudes coerentes de quem lutou contra o apartheid, mas mantém no seu quintal desigualdades tão abissais quanto as vividas na África do Sul. A intolerância levou o diplomata brasileiro José Augusto Lindgren, atual cônsul-geral em San Francisco (EUA), a propor à ONU a realização de uma nova discussão sobre o preconceito pós-apartheid. A III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância será realizada em Durban (África do Sul) entre 31 de agosto e 7 de setembro.

Desigualdade – O país de Lindgren, onde o mito da democracia racial foi nocauteado pelas estatísticas, tem contas a prestar. O mercado de trabalho é uma prova do tamanho da desigualdade: os negros ganham, em média, a metade do salário dos brancos. Os relatos e sugestões do Brasil ao mundo pós-apartheid serão definidos em um encontro nacional na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, entre os dias 6 e 8 de julho. Os organizadores dos dois eventos prevêem que o abismo entre negros e brancos concentrará as atenções tanto em Durban quanto no Rio.

O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), do Ministério do Planejamento, iniciou, em março, uma de suas pesquisas mais ambiciosas. Sob a coordenação do economista Ricardo Henriques, o instituto quer fazer um diagnóstico da desigualdade racial brasileira em todos os seus aspectos. A pesquisa deve ser concluída no fim de 2002. ISTOÉ teve acesso aos primeiros dados. Os resultados mostram que as leis existentes de nada adiantam. Um trabalhador branco ganha, em média, R$ 573 mensais. O negro, R$ 262. Nos dados do Ipea, o branco passa mais tempo na escola (6,3 anos) do que os negros (4,4 anos). Entre adultos de 25 anos, a situação é a mesma: o negro estuda 6,1 anos e o branco 8,4. O Ipea concluiu também que, se os negros tivessem a mesma escolaridade dos brancos, ainda assim seus rendimentos seriam 30% menores, de R$ 407. A diferença é fruto da discriminação no mercado de trabalho e nesse campo não houve avanços no último século.


“Precisamos de ações afirmativas para reduzir essa distância. Uma delas é garantir um tempo maior de permanência na escola para os negros”, afirma Henriques. Ele defende a adoção de cotas para negros no serviço público, nas empresas e nas universidades. O sociólogo Luiz Antônio de Souza, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, ressalta que o Brasil é um dos países mais injustos quando se trata de distribuição de renda. Como a pobreza é muito gritante e, historicamente, foi construída a imagem de que os negros são incompetentes, e por isso pobres, a questão racial foi maquiada. “Sempre se deu mais importância para a questão social, dizendo: ‘Vamos combater a pobreza que a situação racial vai ser resolvida.’ Isso não é verdade. A discriminação não está associada à pobreza. Ela é racial e, no caso dos gays, sexual. Fazer essa ligação é não aceitar o preconceito. No Brasil não se encara a questão racial como um problema”, analisa.
Souza lembra que aqui se construiu a imagem da discriminação benéfica, ou seja: o negro é muito bom para o esporte, o Carnaval, a música. “O tipo de construção ‘tem samba no pé, é bom no futebol’ serve para dizer que ele se presta apenas para a corporalidade, para o sexo. O negro não ascende socialmente em pé de igualdade com o branco. É como se ele só fosse capaz para determinadas áreas”, afirma o sociólogo. Esse tratamento diferenciado é um velho conhecido do ex-jogador e hoje treinador de futebol Cláudio Adão, 45 anos, e de sua mulher, a jornalista Paula Barreto, 42. Cláudio é negro e Paula, filha do cineasta Luiz Carlos Barreto, é branca. Eles estão casados há 23 anos e têm dois filhos. Quando começaram o namoro enfrentaram todo tipo de preconceito. “No começo, quando chegávamos aos lugares, as pessoas ficavam em silêncio. Hoje é mais sutil, mas ainda acontece. Quando um carro pára ao lado do nosso, normalmente as pessoas ficam nos olhando”, diz Paula. Há dois meses, o filho Felipe, 15 anos, que é negro, estava com três amigos brancos e queria entrar em um condomínio de luxo da Barra da Tijuca para ir a uma festinha. O segurança liberou a entrada dos rapazes brancos e Felipe foi barrado. Cláudio Adão também vê discriminação na função de técnico de futebol. “As pessoas acham que o negro só serve para jogar, correr, fazer gols, mas não é capaz de fazer estratégias, pensar”, afirma ele. “Se disputar uma vaga com dois treinadores brancos, serei eu o preterido”, lamenta.

“O governo brasileiro reconhece a existência de discriminação. Apesar da nossa legislação, que avança, mantemos a situação em que a população negra enfrenta muito mais do que a branca pobre a falta de acesso à educação, ao mercado de trabalho, aos salários e a outros indicadores sociais e culturais”, reconhece o embaixador Gilberto Saboya, secretário de Estado de Direitos Humanos e coordenador da conferência brasileira. A maior carência do País, admite o embaixador, é de políticas públicas.
A lentidão das vitórias contra o racismo levou o teólogo Geraldo Rocha a abandonar a batina. Ele estudou em um seminário no Rio Grande do Sul durante 13 anos. “Eu era o único negro e, depois de muita discriminação, fui convidado a me retirar quando comecei a trabalhar com grupos de consciência negra”, lembra. Rocha se mudou para o Rio de Janeiro e continuou estudando teologia na PUC. Segundo ele, dos 12 mil padres no Brasil, apenas 200 são negros. O racismo, explícito ou disfarçado, faz parte de uma intolerância mais abrangente. As igrejas cristãs, por exemplo, não discriminam apenas o negro. “A Igreja é genocida. Suas pregações contra os homossexuais alimentam os grupos fascistas que matam travestis e gays”, analisa o escritor João Silvério Trevisan. Ao contrário do sistema policial intolerante com os homossexuais, o Judiciário tem se mostrado mais sensível. Já reconhece direito à pensão, à herança e à não discriminação. Em Estados como Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais a legislação está mais avançada. Segundo o professor de História do Brasil na Universidade da Califórnia, James Green, a melhor proposta seria alterar a Constituição para explicitar a proibição à discriminação por orientação sexual. “ Mas não adiantam leis sem conscientizar a sociedade”, admite Green.

Informações retiradas da revista ISTOÉ
N° Edição:  1657 |  04.Jul.01 - 10:00 |  Atualizado em 19.Jul.11 - 17:58
Colaboração de Danielle Gonçalves Bohrer

Um comentário:

  1. E O PROFESSOR COMO FORMADOR DE OPINIÃO TEM UM IMPORTANTE PAPEL NESSA TAREFA DE EDUCAR PARA ACEITAR AS DIFERENÇAS SEM PRECONCEITO.

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