terça-feira, 8 de maio de 2012

Mulheres violentadas



A imagem que ilustra esta postagem é muito forte. Em nome de alguns estômagos mais fracos talvez se devesse evitar a sua exposição. Mas isso significaria fechar os olhos, tapar os ouvidos e calar diante da barbárie.
Se assim agíssemos estaríamos nos juntando à imensa legião de hipócritas que em nome de tradições religiosas ou pura índole de violência finge não enxergar a brutalidade que o mundo ainda pratica contra a mulher, por ação ou omissão.
A foto aí ao lado foi publicada na capa da revista norte-americana Time, edição desta semana, e mostra a face de Aisha, uma tímida jovem de apenas 18 anos, que foi sentenciada pelo Talibã a ter seu nariz e orelhas cortados "por fugir da casa da família do marido", segundo o editorial da revista.
Segundo a Time, Aisha está sob a proteção de guardas armados e recebe apoio financeiro da ONG Women for Afghan Women, que em tradução livre significa Mulheres por Mulheres Afegãs, e será levada aos EUA, onde passará por uma cirurgia para reconstrução do rosto a ser paga por uma organização humanitária da Califórnia.

Esse assunto, a violência contra a mulher, volta e meia é abordado aqui no Dando Pitacos, e numa dessas oportunidades registramos que "não há dúvidas sobre o espaço conquistado pela mulher nos últimos tempos, mas é preciso avançar em seus direitos, mas não só nos direitos da mulher branca, bonita, bem nascida e culta, mas também nos direitos da mulher, branca ou negra, das comunidades carentes e às indígenas de todo o país".

Sempre nos referimos, também, à violência praticada contra a mulher, "a cada instante em todos os cantos do planeta, mas principalmente em países mais pobres como os do Continente Africano, onde a mulher, sem dignidade em razão das agressões sofridas, apenas contenta-se em defender a existência miserável".

É inconcebível que no curso do terceiro milênio ainda existam seres humanos submetidos a um atraso cultural que remonta ao obscurantismo da Idade Média, com leis e costumes cruéis e desumanos que superam o maquiavelismo do famigerado Santo Ofício da Inquisição, onde mulheres e supostos hereges foram sacrificados em nome de Deus.

Na edição de nº 2165 (19/05) a revista Veja publicou reportagem especial sob o título Afeganistão - Um Inferno para as mulheres, assinada pela jornalista Thaís Oyama, que assim descreve o que viu:

"No caminho do aeroporto para o centro da cidade, as barreiras de soldados armados com anacrônicos fuzis Kalashnikov e os muros de concreto erguidos diante das embaixadas lembram a todo instante que a desgraça está à espreita. Só nos dois primeiros meses do ano, a capital do Afeganistão foi alvo de duas séries de atentados cometidos por homens-bomba, nas quais 21 pessoas morreram. O país foi apontado, no último relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), como o lugar mais perigoso do mundo para gerar uma criança. Mas pior do que vir à luz é nascer mulher no Afeganistão.

Nove anos depois da queda do regime do Talibã, as afegãs continuam pagando a parte mais pesada da conta do fundamentalismo religioso. Nas ruas, a maioria ainda usa a burca, a roupa que cobre o corpo feminino dos pés à cabeça e que era uniforme compulsório no tempo da milícia talibã. Embora as escolas para mulheres não sejam mais proibidas, as estudantes representam uma porcentagem ínfima da população feminina e mais da metade das afegãs ainda se casa antes dos 16 anos de idade – salvo raríssimas exceções, com homens escolhidos por sua família. Sob o totalitarismo medieval do Talibã, as que saíam às ruas desacompanhadas do marido ou de um parente do sexo masculino eram castigadas a chibatadas. Hoje, a proibição não existe mais, mas as afegãs continuam ausentes da paisagem. Para elas, qualquer lugar onde haja aglomeração masculina é considerado impróprio, o que inclui mercados, feiras, cinemas e parques. A segregação sexista faz com que até nos saguões dos aeroportos e nas festas de casamento exista um "setor feminino" – só no primeiro caso não formalmente delimitado. Nas bodas em que as mulheres comparecem maquiadas e com belos vestidos, quase sempre há dois salões – um para eles e outro para elas. Poucas se arriscam a desafiar as proibições sociais. A aplicação de castigos físicos a mulheres de "mau comportamento" continua a ser vista como um dever e um direito da família. Uma pesquisa feita em 2008 com 4 700 afegãs mostrou que 87% já tinham sido vítimas de espancamentos ou abusos sexuais e psicológicos – em 82% dos casos, infligidos por parentes. O Afeganistão livrou-se do jugo do Talibã, mas não conseguiu varrer o obscurantismo religioso que ele ajudou a disseminar. A interpretação radical e misógina dos princípios do Islã é a principal causa da tragédia das mulheres afegãs.

A prática da autoimolação é um dos sinais mais cruéis de sua magnitude. Entre 2008 e 2009, ao menos oitenta afegãs tentaram o suicídio ateando fogo ao corpo. Na província de Herat, a oeste de Cabul, a incidência desse tipo de episódio é tão alta que o principal hospital da região montou uma unidade para atender exclusivamente a casos assim. Quando a reportagem de VEJA visitou o lugar, havia três mulheres internadas por queimaduras autoinfligidas. Todas tinham menos de 26 anos e eram analfabetas. No Afeganistão, apenas 15% das mulheres com mais de 15 anos sabem ler e escrever. Rahime, de 25 anos, deu entrada no hospital com 35% do corpo queimado. Ela disse que tentou se imolar porque "estava cansada de viver". Contou que se casou aos 10 anos de idade e, desde então, engravidou seis vezes (sofreu três abortos espontâneos). A mãe estava com ela no hospital. Indagada sobre as razões que a fizeram permitir que a filha se casasse tão cedo, explicou que, na verdade, não a deu em casamento, mas foi obrigada a vendê-la. O marido era lavrador em uma plantação de ópio e não conseguia sustentar a família, de oito filhos. "Ficávamos três ou quatro noites sem ter o que comer", afirmou ela. Rahime foi entregue a um comerciante da região em troca de 200 000 afeganes, o equivalente a 4 300 dólares, divididos em dez pagamentos. O comerciante, hoje seu marido, é "bem mais velho" do que ela, mas nem a jovem nem a mãe souberam precisar quanto.

CANSADA DE VIVER
Rahime, de 25 anos, ateou fogo ao corpo jogando querosene sobre a cabeça.
Ela foi dada em casamento aos 10 anos de idade
Para atear fogo em si próprias, as mulheres costumam recorrer a óleo de cozinha ou ao querosene usado para acender lampiões. Apenas 6% das casas na zona rural do país têm eletricidade. O óleo provoca queimaduras mais graves do que o querosene, porque gruda na pele, o que faz com que o calor permaneça por mais tempo em contato com o corpo. Tanto o óleo quanto o querosene superam a água fervente, já que a fumaça que produzem pode causar, além de intoxicação, queimaduras internas. A maior parte das mulheres que tentam imolar-se não morre na hora, mas depois de alguns dias, vítima de falência de múltiplos órgãos resultante da perda de água. Rahime tinha o rosto e o corpo enfaixados. Ela verteu querosene sobre a cabeça, e não sobre o peito, como ocorre com mais frequência. Enquanto falava, uma policial se aproximou da sua cama para interrogá-la sobre os motivos da tentativa de suicídio. A investigadora Zulaikha Qambari trabalha há três anos no Departamento para Solução de Conflitos Familiares da Delegacia de Herat. Rahime disse a ela que decidiu atear fogo ao corpo porque a sogra passou a maltratá-la desde que o seu marido foi trabalhar no Irã. As duas mulheres deitadas ao lado da jovem também culparam alguém da família pelo ato extremo: uma diz que decidiu se matar depois de apanhar do padrasto do marido e outra afirmou que tomou a decisão por causa de uma briga com a cunhada em torno de um cosmético que havia ganho de presente. A policial Zulaikha afirmou estar habituada a ouvir justificativas como essas. "Algumas mulheres demoram para contar a história inteira, que muitas vezes inclui estupros e espancamentos sistemáticos. Outras nem são capazes de explicar por que fizeram aquilo. Apenas dizem que não querem mais viver."

Quando a reportagem se preparava para deixar o hospital, deparou com a chegada de uma quarta vítima. Ruquia, de 15 anos, proveniente da província vizinha de Badghis. Ela apresentava 45% do corpo queimado. A mãe disse aos médicos que a filha havia se acidentado fazendo chá. "Mentira", sussurrou o enfermeiro. "Sinta o cheiro de querosene que exala do corpo dela." A menina estava casada havia um ano.

A quantidade de mulheres que tentam imolar-se no Afeganistão atingiu o auge em 2004, quando só o hospital de Herat recebeu 350. Desde então, o número de vítimas tem-se mantido estável – e surpreendentemente mais alto do que o registrado no tempo em que o Talibã mandava no país. "Naquele período, quase não recebíamos casos como esses", afirma o diretor da unidade de queimados, Hamayoon Azizi, que há doze anos trabalha no hospital. Isso não quer dizer que as mulheres tinham menos motivos para sofrer no passado. Durante os cinco anos em que esteve no poder, o Talibã proibiu-as de trabalhar e de estudar. Instituiu a pena de apedrejamento para adúlteras e baniu qualquer tipo de entretenimento, incluindo cinema, televisão e até a brincadeira de empinar pipas, tradicional no país. A música também foi vetada, e quem fosse achado com uma fita cassete no carro era preso. Para o médico Azizi, o aumento no número de casos de autoimolação em relação àquele período é fruto do contato que muitas afegãs tiveram com o Irã, onde a prática está disseminada há mais tempo. O Irã faz fronteira com a província de Herat e, com o Paquistão, foi escolhido como refúgio por milhões de afegãos que deixaram o seu país no fim dos anos 90. Com a queda do Talibã, esses refugiados começaram a retornar ao Afeganistão – trazendo, na hipótese do médico, o "know-how" da auto-imolação".

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